
No dia 31 de março de 2025, as ruas de Assunção, no Paraguai, vibraram com uma mistura de indignação e incredulidade quando o presidente Santiago Peña convocou o embaixador brasileiro para uma explicação formal. O motivo? Um depoimento explosivo prestado à Polícia Federal brasileira por um funcionário da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), revelando uma operação de hacking que invadiu sistemas governamentais paraguaios. O alvo: informações sigilosas sobre as negociações bilaterais da Usina Hidrelétrica de Itaipu, o colosso energético que divide águas, energia e, agora, segredos entre Brasil e Paraguai. Iniciada em junho de 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro, a ação – batizada internamente como uma variação de “Fronteira Segura” – usou o software Cobalt Strike para penetrar e-mails e documentos do Ministério das Relações Exteriores paraguaio e da Direção Nacional de Itaipu Binacional. O objetivo declarado era antecipar movimentos que pudessem elevar as tarifas energéticas, custando bilhões ao Brasil, mas o método cruzou linhas vermelhas: violação de soberania digital de um aliado histórico.
Essa não foi uma operação isolada, mas o ápice visível de uma expansão gradual da ABIN para além das fronteiras nacionais, um território constitucionalmente restrito. Criada em 1999 como sucessora do infame Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura militar, a agência sempre se posicionou como guardiã interna, focada em ameaças domésticas como terrorismo e crime organizado. A Constituição de 1988, em seu artigo 144, limita sua atuação ao território brasileiro, vedando ações ofensivas no exterior sem o manto de parcerias diplomáticas. No entanto, depoimentos, relatórios desclassificados e acordos internacionais pintam um quadro mais nuançado: uma agência que, sob pressão de instabilidades regionais e globais, esticou seus tentáculos para o Cone Sul, o Caribe e até potências como a Rússia. De identificações de espiões estrangeiros em Brasília a cooperações fronteiriças com a Venezuela e a Bolívia, a ABIN navega em águas turvas, onde defesa e agressão se confundem, e o sigilo estatal colide com a transparência democrática.

Para traçar os contornos dessa expansão, é essencial revisitar as raízes da ABIN. O SNI, fundado em 1964 pelo general Humberto de Alencar Castelo Branco, foi o braço repressivo da ditadura: acumulou dossiês sobre 300 mil opositores, financiou torturas e interferiu em eleições regionais. Relatórios da Comissão Nacional da Verdade, de 2014, documentaram mais de 400 mortes ligadas ao serviço, incluindo o assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 1975. A redemocratização, com a Constituição de 1988, impôs freios: o artigo 4º da Lei 9.883/1999, que criou a ABIN, restringe sua inteligência a “conhecimentos relacionados à segurança do Estado e da sociedade”, com ênfase em defesa externa passiva e relações exteriores. “A agência não é uma CIA brasileira; seu mandato é analítico, não operacional ofensivo”, afirma o professor de relações internacionais da USP, Oliver Stuenkel, em análise à BBC. No entanto, brechas legais – como a troca de informações via 18 representações diplomáticas em capitais como Washington, Moscou e Buenos Aires – permitiram uma deriva gradual para ações mais intrusivas.
Essa deriva ganhou tração nos anos 2000, com a globalização de ameaças como o narcotráfico e o terrorismo. Em 2007, a ABIN inaugurou postos avançados na Colômbia, Venezuela e Argentina, focados em monitoramento de rotas de cocaína e migrações irregulares. O Paraguai e a Bolívia seguiram em 2008, enquanto planos para a China e o México foram discutidos em 2017. Esses escritórios, segundo o site oficial da ABIN atualizado em 2024, servem como “antenas de coleta passiva”: relatórios de embaixadas, parcerias com a DEA americana e a Interpol. Mas o caso paraguaio revela como a passividade pode virar proatividade. Em depoimento à PF em março de 2025, o agente – identificado como “fonte interna” para proteção – descreveu uma equipe de cinco analistas cibernéticos em Brasília usando o Cobalt Strike, uma ferramenta legítima para testes de penetração mas weaponizada em ataques estatais. “Acessamos mais de 200 documentos, incluindo minutas de reuniões com consultores dos EUA sobre o Anexo C do Tratado de Itaipu”, relatou, segundo transcrições vazadas ao G1. A operação foi pausada em novembro de 2022 por falha técnica, mas reiniciada brevemente em 2023, antes de ser cancelada pelo diretor interino sob Lula.
O contexto da Usina de Itaipu amplifica o drama. Inaugurada em 1984 após um tratado de 1973, a hidrelétrica gera 14% da energia brasileira e 90% da paraguaia, mas as tarifas – fixadas em US$ 19,3 bilhões anuais para o Paraguai – são alvo de disputas desde 2019. O Paraguai, que exporta excedentes ao Brasil a preços subsidiados, exigia reajustes para US$ 30 bilhões, consultando firmas americanas como a Black & Veatch. Fontes do G1 indicam que a ABIN temia “interferência externa de Washington” para enfraquecer a posição brasileira, motivando o hack. “Era uma guerra assimétrica por recursos”, explica o economista paraguaio Juan Carlos Duarte à Reuters. A revelação, publicada pelo UOL em 31 de março de 2025, congelou negociações: Peña suspendeu reuniões em Foz do Iguaçu, invocando a Convenção de Budapeste sobre Cibercrime, e o chanceler Cuauhtémoc Arias convocou o embaixador brasileiro. O Itamaraty negou envolvimento atual, atribuindo a ação à gestão Bolsonaro e destacando sua neutralização em março de 2023. Especialistas em direito internacional, como o professor da FGV Antonio Francisco, apontam improbabilidade de sanções na OEA, mas alertam para precedentes em disputas regionais.

Enquanto o Cone Sul ferve com o escândalo paraguaio, outros vizinhos revelam o alcance fronteiriço da ABIN. Na Venezuela, sob Nicolás Maduro, a agência participa de operações como a Ágata 8, de 2014, que apreendeu recorde de 1,2 tonelada de drogas na fronteira Roraima-Boavista. Em 2016, durante a Operação Curare VII, a ABIN coordenou com a PF e o Exército para mapear rotas de tráfico humano e ouro ilegal, identificando 15 células paramilitares ligadas a cartéis colombianos. Relatórios internos, citados pela Agência Brasil, usaram drones e satélites compartilhados com a NASA para monitorar acampamentos no Orinoco. Críticos, como o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), questionam se essa vigilância não se estende a opositores exilados, violando o asilo político. “A fronteira é porosa, mas a inteligência não pode ser seletiva”, argumenta Molon em audiência na Câmara.
Na Bolívia, o histórico é similar: em 2012, a ABIN investigou a apreensão de material radioativo em Santa Cruz de la Sierra, suspeitando de contrabando nuclear via rotas andinas. Quatro prisões resultaram de uma operação conjunta com a PF e a Interpol, durando 45 dias. Mais recentemente, em 2019, durante a crise que derrubou Evo Morales, a agência monitorou comunicações diplomáticas bolivianas em Brasília, trocando dados com a DEA sobre infiltrações cubanas. Um relatório da PF, acessado pela Folha em 2024, indica que essas ações beiram o limite legal, especialmente sem mandados judiciais. “A cooperação transnacional é vital, mas ações ofensivas violam o Pacto de San José da Costa Rica”, alerta o jurista Ives Gandra Martins no Estadão.
Fora da América Latina, o caso russo ilustra a contraespionagem defensiva da ABIN. Em abril de 2024, a agência identificou Sergei Alexandrovitch Chumilov, diplomata na embaixada russa em Brasília, como agente do SVR (serviço de inteligência exterior de Moscou). Posando como primeiro-secretário cultural, Chumilov recrutava informantes em universidades e firmas de tecnologia, visando dados sobre agronegócio e ciberdefesa brasileira. Revelações do Valor Econômico detalham que ele foi expulso em julho de 2023, após pedido diplomático, graças a uma operação que combinou análise de metadados e parcerias com o MI6 britânico. “Foi uma vitória discreta, mas sinaliza o Brasil como alvo em guerras híbridas”, comenta o jornalista da Deutsche Welle, Boris Herrmann. Uma investigação do New York Times, de maio de 2025, ampliou o escopo: o Brasil serviu como “fábrica de espiões” russos, com Chumilov treinando agentes para a América Latina. A ABIN, em resposta, solicitou à CIA uma lista secreta de 1.500 russos fichados, checando conexões com um suspeito preso em São Paulo.

Essas ações externas não surgem do vácuo; elas ecoam problemas domésticos que minam a credibilidade da ABIN. A “ABIN paralela”, desmantelada pela PF em julho de 2024 na Operação Última Milha, espionou 30 mil brasileiros – de ministros do STF como Alexandre de Moraes a jornalistas e sindicalistas – usando o software israelense FirstMile (antigo Cognyte). Contratado legalmente em 2021 para geolocalização, o sistema foi desviado para fins políticos, com dados armazenados em servidores de Tel Aviv. O diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, revelou em janeiro de 2024 que a operação atingiu “altos escalões”, violando a Lei de Acesso à Informação e o Marco Civil da Internet. Servidores foram demitidos em outubro de 2023 por irregularidades, e a PF imputou crimes contra a soberania nacional ao núcleo bolsonarista. “A politização corroeu a agência, transformando-a em ferramenta eleitoral”, conclui o relatório de 1.125 páginas da PF.
Internacionalmente, parcerias com agências como CIA e Mossad adicionam camadas de complexidade. Em 2013, a ABIN monitorou telefonemas de diplomatas dos EUA e da UE em Brasília, vazando dados que irritaram Washington – uma retaliação aos leaks de Edward Snowden sobre espionagem da NSA a Dilma Rousseff. Cooperações persistem: com a CIA, trocas sobre narcotráfico na Tríplice Fronteira; com o Mossad, treinamentos em contraterrorismo pós-7 de outubro de 2023, apesar de tensões com a PF por uso de Pegasus em alvos brasileiros. Em 2025, a ABIN coordena o Grupo de Trabalho de Contraterrorismo do BRICS, discutindo desradicalização e IA em ataques, e assinou acordo com a OIM para combater contrabando de migrantes. “A cooperação é essencial em um mundo interconectado”, afirma o site da ABIN, mas especialistas como James Bamford, em entrevista à BBC de 2013, alertam: “Espionagem estatal não se compara a novels; ela erode trust global”.
As implicações do caso paraguaio reverberam como um terremoto regional. Itaipu, que faturou US$ 20 bilhões em 2024, enfrenta impasse: o Paraguai estima perdas de US$ 500 milhões anuais sem acordo, enquanto o Brasil arrisca blecautes em São Paulo. A Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) do Congresso, instalada em abril de 2025, apura o episódio, com o diretor-geral da ABIN convocado para depor. Internacionalmente, a ONU e a Interpol monitoram, temendo escalada em disputas hídricas na Bacia do Prata. Os EUA expressaram “preocupação” via Departamento de Estado, mas fontes do GSI sugerem compartilhamento prévio de inteligência. A China, maior parceira comercial, oferece mediação via Huawei para ciberdefesa.
Reformas são urgentes. Em maio de 2025, o Congresso aprovou emendas à Lei de Inteligência Nacional, reforçando auditorias civis e proibindo operações ofensivas no exterior sem aval do STF. A PF e a ABIN travam disputa por poder desde janeiro de 2023, com acusações mútuas de vazamentos. “Precisamos de uma agência transparente, não sombria”, clama o senador Fabiano Contarato (PT-ES) na CCAI. No BRICS, a ABIN lidera discussões sobre IA terrorista, mas o escândalo paraguaio mancha sua imagem.

Em última análise, as operações da ABIN contra outros países expõem as contradições de uma potência emergente. O Brasil, com sua vastidão amazônica e recursos estratégicos, não pode se confinar a bolhas soberanas. Mas o equilíbrio entre vigilância e violação é precário. Como resume Stuenkel: “Inteligência é o invisível que protege, mas quando arma, corrói democracias”. O rio Paraná, com suas águas compartilhadas, lembra que fronteiras são veias de confiança – e, por ora, elas sangram. Reformas, transparência e diplomacia restaurarão o fluxo, ou o Sul Global mergulhará em sombras mais densas.
Fontes e referências
- Para que serve Abin e por que é alvo de críticas desde sua fundação – BBC
- Espionagem da Abin ao Paraguai: entenda as regras internacionais – G1
- Funcionário da Abin diz que ação hacker contra governo paraguaio… – G1
- Cobalt Strike: Abin teria usado programa para espionar Paraguai – G1
- Abin identifica espião da Rússia atuando em embaixada de Brasília – Valor Econômico
- ABIN participa de ações na fronteira com a Venezuela – Portal Gov.br
- Abin cria postos na Colombia, na Venezuela e na Argentina – Folha de S.Paulo
- Veja em 5 pontos o que a operação da PF revelou sobre a Abin paralela – G1
- ABIN — Agência Brasileira de Inteligência – Portal Gov.br
- Espionagem e energia: Como o caso do hacking contra o Paraguai… – The Conversation